1. Tudo que eu sei foi aprendido?
Aprender não é só acumular conhecimento, é também construir filtros — crenças, vieses e padrões que moldam como enxergamos o mundo. O desafio real está em reconhecer esses filtros e ter coragem de desaprender o que já não serve, abrindo espaço para novas narrativas e possibilidades. Porque, no fim, evoluir não é só sobre o que aprendemos, mas sobre o que escolhemos ressignificar.
Na busca por me entender, sempre achei interessante observar como nosso corpo funciona. O que antes era apenas uma análise filosófica — em que eu observava e gerava hipóteses que muitas vezes não eram corretas — foi se tornando mais real com os estudos e o aprofundamento. Não sei se você já parou para se fazer perguntas como:
1 - Como pode um músculo “aprender” através de um processo que meu cérebro retém informação: repetindo?
2 - Como microexpressões do meu rosto se formam antes mesmo de eu processar o que estou vendo ou sentindo?
3 - Como eu aprendi o que eu gosto a ponto do meu corpo reagir com batimentos acelerados e/ou excitação?
4 - Como minhas pernas seguem um caminho que eu não estou efetivamente pensando?
5 - Um trauma é um aprendizado do que não quero repetir que transborda para várias estratégias de evitar que eu sinta aquela dor novamente?
Esses são apenas alguns exemplos. E talvez você tenha pensado em outros, que também te intrigam: aprendizados que, em algum momento, ficaram tão internalizados que se tornaram parte dos nossos movimentos e ações. Aprendemos a dirigir até o corpo fazer sozinho, a sorrir em certas situações sociais sem pensar, a reagir com medo antes mesmo de entender o perigo. São camadas de conhecimento que se colam em nós: umas conscientes, outras tão automáticas que parecem naturais. Antônio Damasio, que estuda a relação do corpo com as emoções explica em um dos seus livros sobre aprendizagem associativa:
“Por que o cérebro deste paciente evocaria os tipos de pensamentos que normalmente causam tristeza, considerando que a emoção e o sentimento não foram motivados pelos estímulos apropriados? A resposta tem a ver com a dependência do sentimento em relação à emoção e aos mecanismos intrigantes da memória. Quando a emoção tristeza é ativada, sentimentos de tristeza surgem instantaneamente. Em pouco tempo, o cérebro também produz o tipo de pensamentos que normalmente causam a emoção tristeza e os sentimentos de tristeza. Isso ocorre porque a aprendizagem associativa conectou emoções e pensamentos em uma rica rede bidirecional. Certos pensamentos evocam certas emoções e vice-versa.”
E aqui, outra reflexão ganha força: tudo o que somos hoje partiu de um aprendizado. Não apenas o jeito como mexemos as mãos ou como memorizamos fórmulas, mas também as lentes pelas quais enxergamos o mundo. O que dinheiro significa. Quem é “legal” e quem não é. Em quem posso confiar e em quem não devo. Nada disso veio pronto: foi aprendido, internalizado e, muitas vezes, nunca questionado. Cada uma dessas respostas não nasceu de uma verdade absoluta, mas de experiências, repetições e contextos que, ao longo do tempo, foram se sedimentando em nós.
Uma coisa interessante é que aprendemos não apenas com fatos, mas também com interpretações. E é justamente nesse espaço entre o que aconteceu e o que eu interpretei que nascem os viéses. Eles são como marcas invisíveis deixadas pelos aprendizados que acumulamos, moldando a forma como leio uma situação, avalio uma pessoa, decido um caminho. Nosso cérebro não aprende de forma neutra. Ele aprende filtrando, simplificando, generalizando. Vieses cognitivos são atalhos mentais: servem para economizar energia e acelerar decisões, mas também distorcem a forma como enxergamos o mundo. Quando eu acredito que “todo mundo” pensa de certa maneira, talvez eu esteja apenas preso a uma bolha de confirmação. Quando meu corpo reage de forma exagerada a um risco, pode ser a heurística da disponibilidade falando mais alto — lembranças de situações passadas que pesam mais do que dados objetivos.
No fundo, aprender não é apenas absorver conhecimento: é construir filtros. Cada olhar que lanço para o mundo já vem carregado de aprendizados anteriores, de memórias, de dores, de recompensas. Quando percebo isso, começo a entender que a pergunta mais importante talvez não seja o que eu aprendi, mas sim como eu aprendi e o que escolho desaprender.Porque se todo viés é fruto de um aprendizado, então, também pode ser ressignificado.
E aqui está um ponto importante: escolher o que desaprender é, antes de tudo, ganhar consciência. Não dá para desfazer um viés que eu nem reconheço que existe. O primeiro passo é perceber quais filtros estão me limitando: quais crenças sigo repetindo sem questionar, quais padrões de comportamento me protegem mas já não fazem sentido, quais histórias conto para mim mesma que mais me aprisionam do que me libertam. A importância dessa reflexão está no fato de que, sem ela, vivo no piloto automático de aprendizados antigos — alguns herdados da família, outros da cultura, outros de experiências dolorosas. Quando paro para observar e me permito desaprender, crio espaço para novas possibilidades, para novas narrativas e até para novas versões de mim mesma. E mais: desaprender não serve apenas para abandonar o que não funciona. Muitas vezes é a chave para aprender melhor sobre a mesma coisa. Quando me desapego da forma como sempre entendi um conceito, consigo enxergar outras perspectivas, abrir diálogos diferentes e aprofundar minha reflexão. É como olhar para um objeto por diferentes lados: cada ângulo revela detalhes novos que antes estavam invisíveis.
Desaprender não é perder; é criar condições para reaprender de forma mais consciente. É como atualizar um software interno: não ignoro as versões anteriores, mas entendo que, para continuar crescendo, preciso liberar espaço e permitir que novas configurações rodem.
No fim das contas, nosso corpo é a maior prova de que aprender e desaprender são processos contínuos. Cada músculo treinado, cada expressão involuntária, cada reação automática revela que carregamos a memória do que já foi vivido. Mas é também no corpo que mora a possibilidade de transformação: quando treinamos de novo, quando respiramos diferente, quando experimentamos um novo olhar. O corpo nos lembra que nada está totalmente fixo — que o aprendizado pode ser ressignificado, que os vieses podem ser revistos, que até os traumas podem ganhar outros sentidos. Se o corpo pode reaprender, nós também podemos.
Para fechar, Norman Doidge, psiquiatra e psicanalista canadense e autor dos livros The Brain that Changes Itself, explica que mesmo o cérebro criando padrões para facilitar a tomada de decisão, ele também precisa do estímulo de abrir espaço para aprender coisas novas:
“Precisamos aprender se quisermos nos sentir plenamente vivos, e quando a vida, ou o amor, se torna muito previsível e parece que não há mais nada a aprender, ficamos inquietos — um protesto, talvez, do cérebro plástico quando ele não consegue mais desempenhar sua tarefa essencial.”
ps: ele chama cérebro plástico (tradução literal) devido a capacidade dele de mudar sua estrutura e função em resposta à experiência e à atividade mental.
Qual inquietude por aí pode estar indicando uma necessidade de novos aprendizados?